
Este princípio tão simples vale também para a devoção. Nós, católicos, reconhecemos que as práticas devocionais são boas, pois nos levam a viver em sintonia com Deus e a seguir Jesus intensamente. No entanto, todo exagero faz mal. É como o bom remédio, fora da medida adequada: pode destruir em vez de curar.
Atualmente, presenciamos um exagero de devoção no catolicismo. Em alguns casos, o remédio se parece com uma doença. Simplesmente, porque não há limites. E tudo que se faz sem critérios e limites, corre o sério risco de decair em extremismos. No campo religioso, isso se manifesta na intolerância e na miopia espiritual. As pessoas passam a condenar a todos o que não pensam como elas e são incapazes de se auto-criticarem. Mesmo que estejam recheadas de boas intenções.
Há alguns dias recebi um canto sobre Maria. Para quem está mergulhado neste excesso de piedade, parece sublime, belo, perfeito. Intitula-se: “A primeira que comungou”. Veja:
A primeira que comungou foi a Virgem MariaA primeira que recebeu Jesus no coração
A primeira que anunciou foi a Virgem Maria
A quem gerou na fé o profeta que de Isabel nasceu.
Foi por ela que aconteceu a primeira adoração
E quando os magos a encontraram
Houve a primeira grande exposição.
Mãe capela do santíssimo sacrário do amor
Expõe para nós teu filho
Mãe capela da santíssima morada do senhor
Expõe para nós teu filho
Primeiro ostensório do Senhor.
O Concílio Vaticano II, ao promover uma grande renovação da Igreja, pediu que voltássemos à fonte do Evangelho e das primeiras comunidades cristãs. No capítulo 8 do documento sobre a Igreja, intitulado “Lumen Gentium”, apresenta a figura de Maria na dosagem saudável. Diz que Maria deve ser compreendida em relação a Cristo e à Igreja. A partir dessa orientação, confirmada anos mais tarde por um lúcido documento do Papa Paulo VI sobre o Culto a Maria (Marialis Cultus), se busca uma devoção mariana equilibrada, bem dosada.
Infelizmente, não é o que se vê na música acima. O uso exagerado da analogia, ultrapassando o bom senso, leva a afirmações que não são corretas. “Comungar”, no sentido de participar da ceia do Senhor e receber seu corpo e sangue, aconteceu em primeiro lugar com os discípulos de Jesus, antes de sua paixão. Se Maria esteve lá, também tomou parte deste momento que resume a vida, morte e ressurreição de Jesus. Mas dizer que ela foi a primeira que comungou extrapola o bom senso e não retrata o que aconteceu.
Devemos usar com cuidado as analogias ou as figuras de linguagem, para não dizer coisas ambíguas, que escandalizam outros cristãos, inclusive os próprios católicos. Não seria uma imagem inadequada e anacrônica (fora do nosso tempo), dizer que Maria é o primeiro ostensório? Tal afirmação não tem base bíblica e nem raízes nos Pais e mães da Igreja dos primeiros séculos.
A linguagem devocional, quando usada sem limites ou critérios de verificação, acaba produzindo um fenômeno parecido com os termos esotéricos: só pode ser compreendida por quem está dentro do movimento dos iniciados. Aos outros, soa como algo estranho ou sem sentido. Para quem está mergulhado num devocionismo, não há limites em usar as figuras de linguagem. E aqui está o grande problema. Lentamente, Maria se torna mais importante do que Jesus. E o Jesus da devoção também está distante do nosso mestre e Senhor, apresentado nos Evangelhos.
A devoção exagerada não cura. Ao contrário, lentamente leva a terríveis desvios.
Maria merece nosso respeito. A devoção a ela é legítima. Mas não pode extrapolar o bom senso. Cultivemos a lucidez!
Maria e Jesus agradecem... A humanidade também.
Ir. Afonso Murad