sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Religiosidade popular e Devoção Mariana

Por vezes, utilizam-se as expressões “religiosidade popular” e “devoção popular” como sinônimas. No entanto, elas traduzem diferentes realidades. “Religiosidade popular” compreende uma visão unificadora sobre Deus, o mundo e o ser humano, que está presente nos setores populares e nas culturas pré-modernas, de forma assistemática, não reflexa, mas muito ativa. Alguns autores consideram como “religiosidade popular” as formas de relação com o Sagrado que caracterizam os membros de determinada religião, de maneira diferente da sua versão oficial. Trata-se de um conceito com chave predominantemente sociológica e cultural. Independentemente da visão adotada, as práticas devocionais fazem parte da religiosidade popular, como manifestações visíveis da relação com Deus nos segmentos sociais mais pobres e que tiveram pouco acesso à cultura letrada.

Quando o teólogo(a) ou o pesquisador(a) das Ciências da Religião estuda a religiosidade popular, pode abordá-la sob diferentes ângulos: da prática devocional, dos discursos religiosos e de seus diferentes agentes, das influências sócio-históricas e culturais nas experiências do Sagrado. Portanto, a religiosidade popular é muito mais abrangente do que a devoção popular. Isso é importante para o mariólogo, pois há o risco de se confundirem as duas realidades, que estão relacionadas, mas são distintas.

Recentemente, no horizonte católico, a abordagem sobre a religiosidade popular tem assumido certa conotação triunfalista e ingênua. Considera-se a religiosidade popular como um tesouro puro e intacto, que deve ser conservado e difundido o máximo possível, com a bênção e o selo oficial da autoridade. Em contrapartida, critica-se em bloco a teologia moderna, que apontou limites, anacronismos e desvios da religiosidade tradicional. A teologia é culpabilizada como a responsável pela perda da “fé inocente do povo”. E não se percebe que esta “religiosidade idealizada” em muitos lugares já não existe mais como no passado. Não por causa da teologia, mas da cultura urbana, consumista, individualista. Várias práticas devocionais são desenterradas do passado, mas se criam sentidos diferentes para ela. Esta religiosidade urbana (e suburbana) moderna corre o risco de se tornar individualista, intolerante para quem pense diferente e com pouco impacto ético na existência. Como afirmava Marcial Maçaneiro, é mais terapia do que profecia.

Tanto ontem como hoje, a religiosidade popular tem valores e limites. O Documento de Aparecida utiliza outro termo, quase sinônimo: “piedade popular”. E afirma que a piedade popular é um ponto de partida para conseguir que a fé do povo amadureça e se faça mais fecunda. É preciso ser sensível a ela, saber perceber suas dimensões interiores e seus valores inegáveis. É necessário evangelizá-la ou purificá-la, assumindo sua riqueza evangélica (DAp 262). Da mesma forma, A mariologia não pode simplesmente justificar e reforçar qualquer prática piedosa referente à mãe de Jesus, nem também cair no discurso crítico avassalador e desrespeitoso.

Muitos teólogos, pastoralistas e cléricos classificam as práticas religiosas marianas com o nome genérico de “devoção popular”. Tal procedimento não está errado, mas é impreciso, do ponto de vista tanto eclesial quanto cultural.
É comum reunir distintas práticas cultuais (terço, novenas, ladainhas, procissões) com o título de “devoção popular”, para diferencia-las das manifestações públicas e oficiais de culto na Igreja Católica. Neste caso, pensa-se que enquanto a liturgia seria área de atuação do clero, a devoção competiria aos leigos(as), ao fiéis simples. Por vezes, há até certa visão ingênua, como se a devoção fosse uma manifestação que brota da pureza do povo piedoso, e por isso tem que ser mantida intacta. Isso não corresponde à verdade dos fatos. De fato, existem devoções nascidas de leigos e propagadas por movimentos leigos, mas a qualidade delas abrange um leque enorme: da eclesiologia verticalista medieval à visão de comunhão do Vaticano II, de crendices inaceitáveis a expressões teológicas admiráveis. Há ainda devoções criadas por Institutos religiosos e seus fundadores, por presbíteros e, mais raramente, por bispos.

Em alguns momentos da História, o clero se apoderou de devoções de origem laical, porque percebeu que isso fortaleceria o poder eclesiástico ou serviria para reforçar a “identidade católica”, em confronto com os protestantes e a modernidade. Em cada tempo histórico, diferentes agentes eclesiais tomam a vanguarda na promoção de devoções. Pode haver cooperação ou competição entre eles. Vejamos um exemplo conhecido. A devoção a Nossa Senhora Aparecida nasceu em contexto laical, e se desenvolveu lentamente nos primeiros anos. Ganhou expressão e abrangência quando os padres redentoristas assumiram a paróquia da cidade, promoveram as peregrinações e difundiram a devoção pela Rádio Aparecida. Até então, era uma entre as tantas “Nossas Senhoras” no Brasil. A Mãe Aparecida ganhou crescente reconhecimento quando os bispos decidiram transformá-la em “padroeira do Brasil”, no início do século passado. Ao mesmo tempo, pessoas e movimentos leigos continuam disseminando esta piedade. Portanto, a devoção mariana não é somente “popular”, no sentido eclesial, de que provem do laicato. Como toda realidade religiosa, é ambígua e pode ser apropriada por diferentes personagens, a serviço de muitos interesses. Alguns, santos e admiráveis. Outros, espúrios e questionáveis.

O adjetivo “popular”, aplicado à devoção, tem também sentido cultural e sociológico. Acredita-se que tais devoções sejam “populares” porque nascem e são vividas principalmente nos setores sociais empobrecidos, no campo e nos bairros da periferia das cidades. No entanto, o adjetivo é impreciso. A religiosidade de cunho devocional é promovida, vivida e difundida simultaneamente por pessoas e grupos de diferentes segmentos sociais. Há grupos de elites ricas e poderosas que promovem a oração do rosário, como também há comunidades de gente pobre, e de setores médios. Hoje, a devoção mariana está espalhada em todos os segmentos sociais. Em sentido cultural e sociológico, não é mais popular. Foi, em outros tempos.
Um trabalho a ser empreendido pelos teólogos e cientistas da religião consiste em identificar os elementos comuns e a originalidade de cada segmento eclesial (e social), quando assume, reelabora e dissemina determinada prática de piedade mariana.

Pelas razões aludidas acima, parece mais plausível utilizar somente a palavra “devoção” sem o adjetivo “popular”, quando se trata das práticas cultuais católicas que se situam no campo da piedade, fora do âmbito litúrgico. E sem dúvida, a piedade mariana é a mais expressiva.

Afonso Murad. A ser publicado em novo livro de Marialogia.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Natal com Maria

Maria e José nos apresentam Jesus:
Na gruta de Belém,
Nos lugares e tempos inusitados,
No cotidiano, nos dias claros ou cinzentos.
Aqui a Palavra se faz carne
E vem morar pertinho de nós.
Feliz Natal.


Afonso Murad

domingo, 11 de dezembro de 2011

Canto de homenagem a Guadalupe

Neste ano, no dia 12 de dezembro, a experiêncica de Guadalupe completa 480 anos! Medite este bela música do Padre Zézinho (que não é dedicada a Aparecida, e sim a Guadalupe). Ele liga o passado com o presente, contemplando ao mesmo tempo a dimensão pessoal e social da devoção mariana.

Mãe do céu morena, Senhora da América Latina
De olhar e caridade tão divina, de cor igual à cor de tantas raças
Virgem tão serena, Senhora destes povos tão sofridos,
patrona dos pequenos e oprimidos
Derrama sobre nós as tuas graças

Derrama sobre os jovens tua luz,
aos pobres vem mostrar o teu Jesus
Ao mundo inteiro traz o teu amor de mãe
Ensina quem tem tudo a partilhar
Ensina quem tem pouco a não cansar,
e faz o nosso povo caminhar em paz

Derrama a esperança sobre nós, ensina o povo a não calar a voz
Desperta o coração de quem não acordou,
Ensina que a justiça é condição, de construir um mundo mais irmão
E faz o nosso povo conhecer Jesus...

Para ouvir a música em mp3:
http://www.kboing.com.br/padre-zezinho/1-1057486/

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Maria Imaculada

A lmaculada Conceição é o resultado da relação íntima e fiel entre Deus e Maria; de uma relação na gratuidade do amor; de uma relação na qual se conjuga a liberdade de uma escolha e um chamado, com a resposta livre, fiel e contínua por parte de uma criatura. O sentido profundo dessa mensagem dogmática não está tanto na ausência de pecado quanto na plenitude e presença da graça que Deus outorga a Maria; a ausência de pecado é a consequência dessa presença amorosa e eficaz.

Que Maria esteja livre do pecado original não a exime de estar presente nela tudo que é autenticamente humano, com seus diversos dinamismos; também ela participa do caráter opaco da existência, da condição de ser uma mulher numa cultura e sociedade que lhe nega o acesso à Torá e a relega ao silêncio, uma mulher numa aldeia pequena e sem relevância; uma mulher casada com um artesão de um meio rural, dedicada aos trabalhos próprios da casa e da família, ou seja, levando a mesma vida comum e simples de suas vizinhas. Também ela sentia as diversas paixões humanas com suas tendências. Porém, à diferença de nós, conseguia integrá-las e orientá-las conforme o plano de Deus, no gozo da abertura a ele, efetivada em sua entrega generosa aos outros e na luta contra o mal. As contradições, os sofrimentos decorrentes da fidelidade à graça nela presente, assume-os de tal modo que, longe de anulá-la, de fechá-la em si mesma, lhe possibilitam crescer.

K. Rahner, em seu livro Maria, Mãe do Senhor, apresenta a Imaculada Conceição como a cheia de graça e a perfeitamente redimida. Que Maria seja a "cheia de graça" e tenha se visto livre do pecado original não implica privá-la ou negar-lhe sua humanidade. Mas apenas ressaltar que o Deus da Vida plenificou de tal modo seu ser que se tornou mais forte nela a luta pelo bem do que o ceder às forças do mal; mais o projeto de Deus do que a debilidade humana. E isso foi vivido por Maria, não por meio de um esforço voluntarista, mas sim por graça de Deus e resposta livre de sua parte. Nessa resposta sua pessoa se plenifica, cresce, brilha e ilumina.

Tampouco é negada a bondade do mundo criado nem a do ser humano. Maria não apresenta a si mesma como a perfeita; pelo contrário, como a humilhada, e desde essa verdade é resgatada pelo Deus que nela realiza maravilhas. A partir desta contemplação e compreensão ela é proclamada no Evangelho e na Igreja como a "cheia de graça". A Imaculada Conceição é Maria de Nazaré, que uma vez mais revela a opção de Deus pelos pobres. Trata-se da história de um chamado e de uma resposta.

Este dogma mariano também proclama que o bem é anterior ao mal, a graça é mais forte que o pecado; e que esta graça é patrimônio de todos, pois, como afirma K. Rahner: “em Maria e em sua Imaculada Conceição fica patente que a misericórdia eterna abraçou desde seu princípio o homem e, portanto, também nós, para que ressalte de maneira nítida que Deus não nos deixou sozinhos”. A Imaculada nos devolve um olhar de esperança, nos ajuda a confiar nas forças do bem, da verdade, da justiça, sobre as forças do mal, da mentira e da opressão. Estas podem até vencer de imediato, mas não são imunes e acabarão vencidas; cedo ou tarde o tribunal da história faz justiça. As situações, as instituições, as pessoas são dinâmicas e, como tais, podem ser transformadas; para isso basta crer e deixar espaço ao Deus da Vida, para que venha nos socorrer

(Sintetizado de: Clara Temporelli, Maria. Mulher de Deus e dos pobres. Releitura dos dogmas marianos, Paulus, p. 174-176)

domingo, 4 de dezembro de 2011

Mariologia: história e símbolo

Em minha reflexão mariológica compreendi que, dado o momento de maturidade intelectual em que nos encontramos, não se deve dar lugar a meras suposições e elucubrações mentais. Maria não necessita de nossas mentiras.  É necessário deixar de lado as imaginações (que muitas vezes funcionaram na mariologia), para nos situarmos o mais possível dentro do plano histórico. Hoje em dia a historiografia chegou a tal ponto de rigor e seriedade científica que seria desonesto não tê-la em conta na hora de falar sobre Maria.
(No entanto), Maria não é somente personagem histórico, que ficou no passado. Ela emerge como personagem arquetípico, contemporânea a todas as gerações.
Maria foi acolhida na Igreja que, nas diversas comunidades, guardou sua memória. Pouco a pouco começou a incluí-la em seu culto e liturgia. Depois, refletiu teologicamente sobre ela, tanto à luz de Jesus, confessado como Filho de Deus e redentor do mundo, como da Igreja, representada sob a imagem da Mulher, a Mãe, a Esposa, a Virgem, a Imaculada e a Assunta. Uma série muito complexa de interações entre piedade popular, progresso dogmático-teológico e magistério eclesiástico se cristalizou em uma mariologia dogmática. Ela expressa com evidência até onde chegou a compreensão eclesial e crente do mistério de Maria, e como se torna difícil de ser explicada teologicamente.
O objetivo da mariologia é oferecer uma síntese que situe Maria, a Mãe de Jesus, nosso Senhor, no lugar teológico e eclesiológico que lhe corresponde. Uma síntese capaz de favorecer, no estudante de teologia, a obtenção de uma visão apaixonada, inteligente e cordial do mistério de Maria; lúcida para descobrir e compreender a energia espiritual transformadora que Maria desencadeia na história da humanidade.
(Condensado de: José C.R. García Paredes, Mariología. Madrid: Biblioteca de autores cristianos – BAC, 2001, introdução, p.XVI – XVII)