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segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Maria guarda os acontecimentos no coração

Por duas vezes, Lucas diz que Maria guarda no coração os acontecimentos e procura descobrir o seu sentido. Na primeira vez, depois do nascimento de Jesus (Lc 2,19). Ela está contente e surpresa, como toda jovem mãe. Deve ter olhado seu bebê e lhe amamentado com carinho. O menino Jesus está envolvido em panos e deitado no local onde o gado se alimenta. Então, eles recebem a visita dos pastores. Quanta coisa para pensar, para meditar, para descobrir o sentido. Na segunda vez, Jesus está crescido. É adolescente, um rapazinho com seus doze anos. Curioso, cheio de iniciativa, ousado, Jesus se encontra no templo, conversando com os doutores. Ouve e questiona. Já antecipa, com esse gesto, o que vai fazer bem mais tarde. Diz uma frase que Maria e José não compreendem: “Vocês não sabiam que devo estar na casa de meu Pai”? (Lc 2,46-49). Maria, mesmo sem entender, guarda no coração. Pensa, reflete, medita, procura o sentido. Conserva a lembrança dos fatos. Faz memória (Lc 2,51).
Quando o evangelista põe duas vezes essa mesma atitude, no começo e no fim da “vida familiar” de Jesus, quer dizer que era algo constante em Maria. Ela cultivava um hábito, um jeito de ser. Maria vive um dos traços marcantes da espiritualidade do Povo da Bíblia: a memória, a recordação. A Escritura Judaica continuamente apela para que, recordando o passado, tenhamos gravado na mente e no coração como Deus fez maravilhas pelo seu povo, o escolheu e lhe deu uma missão. (Ver Dt 4,32-40).
Para ser fiel a Deus, o povo deve recordar que foi libertado do Egito, da casa da escravidão (Dt 6,12s), que caminhou muitos anos no deserto, passou por enormes dificuldades e foi educado por Deus (Dt 8,2-5). O Senhor fez com ele uma aliança, válida no passado e no presente (Dt 5,1-4). A infidelidade começa com o esquecimento. Apaga-se da “memória do coração” como Deus foi misericordioso com o seu povo. Os profetas trazem de volta a consciência perdida, denunciam o esquecimento, resgatam a atualidade da aliança. Por isso, clamam com tanta insistência: “Escutem!” (Is 48,1), “lembrem-se”!(Is 46,9). Recordar não é nostalgia, volta saudosa ao passado.Trata-se de recordar para acordar, tomar consciência, voltar-se para o Deus da Vida.
Diferentemente de outros povos, que faziam do culto religioso um resgate simbólico do ciclo da natureza, o povo de Israel cultua a Deus recordando-se da sua ação criadora e libertadora e renovando o compromisso com a Aliança. Muitos salmos são oração de memória, atualizadas para o presente em forma de súplica, louvor ou ação de graças (Veja Sl 44, 48, 78, 80, 85, 95, 98, 105, 135, 136). A recordação tem um efeito estimulador. No momento do sofrimento, da perseguição e do fracasso, mostra que a situação atual não é definitiva. Da mesma forma como Deus atuou no passado, criando a partir do caos e libertando desde a escravidão, irá conduzir seu povo para um momento novo (cf. Is 43,5-9).
Ao desvendar a personalidade espiritual de Maria como discípula do Senhor, que ouve e medita os acontecimentos, Lucas está tocando numa característica básica da espiritualidade bíblica. Mais ainda. Em leitura contemporânea, diríamos que este traço de Maria diz respeito a todo ser humano maduro e equilibrado.
Vivemos numa sociedade onde as coisas acontecem com muita rapidez. O ritmo de vida da cidade é acelerado. Levantar cedo, comer depressa, enfrentar o tráfego pesado, trabalhar e estudar, e voltar para casa tarde fazem parte da rotina de muitas pessoas. E nem o lar é lugar de sossego. Estamos cercados de sons do rádio e do CD, e do bombardeio de imagens da televisão. Com toda essa agitação e barulho, a gente tem muita dificuldade em parar e escutar a voz interior. Então, os acontecimentos passam por nós, mas não entram. São como água de tempestade sobre a terra, que cria enxurrada e erosão, mas não penetra.
Somos parte de um mundo com pouca memória. Fatos importantes, acontecidos há um ou dois anos, desaparecem da nossa lembrança, como se fossem passado remoto. Some-se a isto a sobrecarga de informações, que não temos tempo de assimilar. Vivemos um fenômeno pessoal e social, intimamente relacionado. Somos uma geração que cada vez menos alimenta a consciência histórica. A mídia cria fatos novos, que facilmente desaparecem de cena, dando lugar a outros. Não há tempo para deter-se, refletir, pensar, elaborar.
Ora, nutrir a consciência histórica exige refletira sobre os fatos, conferir-lhes sentido e estabelecer relação entre eles. Uma existência equilibrada e saudável exige a criação de um espaço interior, no qual a pessoa conecta os acontecimentos e procura seu sentido. Percebe então que sua vida não é um mero suceder de fatos, de experiências prazerosas e tristes, de vitórias e fracassos. Toma consciência dos processos, das metas a estabelecer. Avalia os passos dados. Saboreia as experiências afetivas e amorosas significativas, faz uma “memória do coração”, que o alimenta nos momentos difíceis. Com isso, pode manter vínculos afetivos duradouros e profundos. Pois o amor necessita de memória, para não se perder diante das crises.
À medida que a pessoa exercita esta atitude de “guardar no coração” e “buscar sentido para os fatos”, se transforma num aprendiz, num discípulo. Quando acontece alguma experiência forte, ela vai além do nível elementar, da satisfação ou dor. Procura descobrir o que aprendeu com a experiência. Cada novo desafio se transforma em aprendizagem existencial. Então, ela não envelhece. Mesmo que tenha idade avançada, está sempre aprendendo com a vida. Vai conquistando a sabedoria, que é o conhecimento com sabor e sentido, o saber que alimenta e unifica a existência.
O homem e a mulher espiritualizados não se caracterizam pela quantidade de orações e devoções exteriores que praticam. Antes, são seres humanos capazes de interpretar sua história à luz de Deus e aprender com ela. Percebem os sinais de Sua presença na existência pessoal e social. Cultivam a interioridade, como capacidade de dar sentido e unidade às múltiplas experiências da vida. Depois do ruído das muitas palavras, entram no silêncio de quem reverencia o mistério de Deus. NEle repousam e Dele buscam forças. Pois a meditação avançada alcança um estágio no qual escasseiam as palavras e os raciocínios. É entrega e presença. Recordação orante, silêncio, ação de graças, adoração e louvor.
Se compreendermos assim o cultivo da meditação como uma dimensão humana indispensável, como o caminho para o auto-equilíbrio e ser aprendiz da existência, descobriremos também um novo sentido para a relação entre ação e contemplação, pastoral e espiritualidade. De um lado, colocamo-nos à disposição do Projeto de Deus, realizando ações eficazes. De outro lado, precisamos nos recolher e silenciar. Quanto mais intensa e forte a missão, mais necessitamos “mergulhar em Deus”. Como diz o poema do compositor brasileiro Beto Guedes: “A abelha fazendo o mel, vale o tempo que não voou”.
Maria nos ensina a cultivar a interioridade, a meditar. Guardar as coisas no coração, buscar sentido nos acontecimentos e preparar-se para o que vai acontecer. Ela se parece com uma abelha que recolhe o néctar de Deus na vida e o transforma em mel. Colhe, recolhe, elabora e oferece doçura.
(Fonte: Afonso Murad, Maria toda de Deus e tão humana. Ed. Paulinas)