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sábado, 21 de abril de 2012

Novos dogmas marianos?

Em ambientes católicos é comum encontrar pessoas e grupos que atribuem a Maria os títulos de “corredentora” e “medianeira”. Baseiam-se no fato de existir uma longa tradição devocional, que justificaria tais títulos. Realmente, esses foram aplicados a Maria nos últimos dois séculos, inclusive por alguns Papas, embora não estejam presentes de forma significativa no primeiro milênio, tanto no oriente quanto no ocidente. Ou seja, não remontam à longa Tradição da Igreja, mas somente a uma parte dela. Importa também levar em consideração que certas afirmações sobre Maria não podem ser absolutizadas e retiradas de seu contexto. Antes, devem ser compreendidas dentro do horizonte em que foram formuladas, e reelaboradas com a perspectiva da visão mariológica do Capítulo 8 da Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II.
O problema aflora atualmente quando movimentos marianistas se põem a defender a criação de novos dogmas marianos, a partir da prática devocional, desrespeitando e desvalorizando o Concílio Vaticano II, como se ele fosse algo secundário.
Vejamos os principais argumentos apresentados a favor de um novo dogma mariano, o da corredenção, e os argumentos contrários. Para tal síntese, usar-se-á principalmente o livro “María corredentora? Debate sobre um título mariológico” de H. Munsterman (Paulus, 2009).
Segundo seus defensores, o título de Corredentora tem se aplicado à Maria há muito tempo, aparece com mais clareza e maior frequência no Magistério recente, de Pio IX a João Paulo II na Encíclica “Redemptoris Mater”, embora não tenha sido assumido pelo Vaticano II. Maria pode ser chamada com propriedade de Corredentora em virtude do plano divino de associá-la plenamente à pessoa e à obra redentora de seu Filho. Maria cooperou com nossa redenção: (1) Crendo nas palavras do Anjo Gabriel e dando seu “sim” no mistério da encarnação, e (2) aceitando todos os sofrimentos que experimentou seu filho nas dores da Cruz. Maria é corredentora porque, abdicando de seus direitos de Mãe, imolou a seu Filho, oferecendo-o voluntariamente pela salvação da humanidade.
Devido à associação tão intensa com a obra salvífica de seu filho, pode-se afirmar que Ela verdadeiramente redimiu a todos e pode ser chamada corredentora do gênero humano. A corredenção mariana deve ser entendida como uma função subordinada, especial e extraordinária de Maria na obra salvadora de seu Filho. Mesmo que Cristo seja o único Mediador, nada impede que haja outros mediadores, com mediação secundária, subordinada à de Cristo. (Fonte: http://www.escuelacima.com/corredentora.html).
A pesquisa histórica, no entanto, mostrou que o título “corredentora” não tem raízes históricas profundas. É praticamente desconhecido na patrística. O renomado mariólogo René Laurentin, no clássico livro “O título de Corredentora. Estudos históricos. Roma/Paris, Ed. Marianum, 1951 (original em francês), traz informações preciosas sobre o tema. Laurentin mostra que na idade média alguns autores aplicam o título de “redentora” a Maria, no sentido de que ela deu à luz ao redentor. Com o desenvolver da devoção medieval a partir do século XII, a atuação de Maria passa a ser compreendida também no momento da cruz. Isso gera conflitos, pois redentor na cruz somente é Jesus. Para diminuir os equívocos, cria-se o termo “co-redendora”.
Os dois títulos coexistiram por um bom tempo, praticamente até o século XVIII. Laurentin sustenta que o título “corredentora” é utilizado durante todos esses séculos numa pequena minoria de obras e raramente por grandes teólogos. Já no início do século passado, com o rápido crescimento do marianismo, o termo ganhou corpo e se encontra disseminado, como em Bover, Roschinni, Kolbe, E. Stein, Escrivá, Padre Pio... No magistério, a expressão “corredentora” aparece pela primeira vez num discurso de Pio XI, em 1930. Portanto, não se fundamenta em fontes consistentes na história da Igreja. É algo relativamente recente, dos últimos 100 anos.
O discurso sobre a corredentora se serve de dois grandes argumentos teológicos pré-conciliares, ligados à teologia da Graça: redenção objetiva e paralelismo Maria-Eva. Usa-se a distinção entre “redenção objetiva” e “redenção subjetiva”, proveniente da teologia de M.J. Scheeben. A redenção objetiva refere-se à obra salvífica de Cristo, consumada na cruz. E a redenção subjetiva diz respeito à aplicação individual dos efeitos dessa obra a cada cristão e à Igreja. Todos os fiéis participam da redenção subjetiva, mas somente Maria atua, de “maneira única e ativa”, na redenção objetiva, por ser a mãe do salvador e sofrer com ele na cruz.
Este discurso recupera, num contexto muito diferente do original, o paralelismo entre Eva e Maria, que aparece em Justino (+165) e Ireneu de Lyon (+202). Afirma-se que pelo Sim de Maria, no momento da Anunciação, é anulada a queda de Eva. Neste sentido, Maria coopera na salvação. Ora, basta conhecer um pouco de teologia bíblica, para constatar a fragilidade do argumento. Maria de Nazaré é personagem histórico. Eva é figura simbólico-mitológica, pois não existiu como pessoa. Tal paralelismo foi útil no século II. Hoje, se mostra anacrônico, impreciso do ponto de vista linguístico, além de trazer consigo um ranço patriarcal e machista, ao culpabilizar a mulher pela origem do mal no mundo.
Hendro Munsterman, no livro citado (Maria corredentora, Paulus, 2009, p. 71-89) elenca argumentos contra o uso do termo corredentora. Apresentamos aqui uma síntese e reelaboração do pensamento do autor. Quais seriam os inconvenientes do termo “corredentora”, aplicado a Maria?
- O título fere a unicidade da redenção realizada por Cristo. A Bíblia é clara: redentor e salvador, somente Jesus! (1 Tm 2,5; At 4,12). Do ponto de vista puramente lexical, o termo coredemptrix é problemático e ambíguo. Mesmo que se diga que o prefixo “co” não significa estar no mesmo nível de Jesus, a imprecisão permanece.
- O titulo é ambíguo. Nas nossas línguas modernas, o prefixo “co” em grande parte das palavras significa ou subentende uma igualdade entre duas entidades. Por exemplo: coproprietário, coassociado... Tal imprecisão semântica deixa margem para pensar que Maria não é salva por Cristo, pois ela ajuda a Cristo no processo de redenção. Quando um determinado termo ou conceito necessita de muita explicação, é sinal de inadequação. E não se trata somente da interpretação dada ao prefixo “co”. Os termos “redenção” e “salvação” representam doutrinas precisas. Já a idéia de corredenção não goza de consenso de interpretação.
- Ele Torna obscuro o papel do Espírito Santo. Na realidade, quem atua como “corredentor” é o Espírito Santo, que realiza nos corações o encontro salvífico do cristão com o Pai e o Filho. Ao transferir tal atribuição para Maria, se olvida esta tarefa do Espírito.
- O conteúdo de “corredentora” reflete um sistema teológico ultrapassado. Segundo W. Beinert, a dificuldade de refletir sobre este tema reside na teologia (neo)escolástica, que reduziu a conceitos o que os Padres da Igreja escreveram em linguagem imaginária e simbólica. Quando Ireneu diz que “Maria é causa de salvação para o gênero humano”, não está fazendo uma afirmação dogmática. Mas foi (e ainda é) interpretado assim. Por isso, é melhor recorre ao método da História da Salvação, preconizado pelo Vaticano II, do que se enredar em conceitos prévios, que por vezes são ambíguos e inoperantes.
-“Corredentora” serve à mariologia desequilibradamente maximalista. No século passado, o título situava Maria como coadjuvante de Jesus, na assim chamada “redenção objetiva”. Com a virada do Vaticano II, a tendência inicial consistiu em enfatizar a participação de Maria na “redenção subjetiva”, enquanto modelo da Igreja. De uma mariologia predominantememente cristotípica (em comparação com Cristo) passou-se para uma eclesiotípica (em relação com a Igreja). No entanto, o neoconservadorismo supervaloriza a Igreja, no processo de redenção. E Maria, também. O título corredentora serve a este propósito.
- A argumentação fundamenta-se pouco na bíblia e na patrística e privilegia testemunho de videntes e determinada interpretação dos papas. Basta ler os escritos dos movimentos marianos que defendem mais este dogma para perceber que a construção de sua doutrina se baseia numa leitura prototípica do Antigo Testamento, sem levar em conta a contribuição da teologia bíblica, faz uma leitura escolástica dos padres da Igreja (paralelismo Eva e Maria), não levando em conta sua linguagem simbólico-alegórica, e se serve de textos de papas da era mariana (e João Paulo II). Para completar, usam o argumento de videntes recentes, como Ida Peerdeman, que em suas mensagens dizem “Maria solicita a definição de um novo dogma!”
- O título nega o acordo de católicos e luteranos sobre a justificação. Em 1999, a Igreja católica e Federação luterana mundial assinaram a “Declaração comum a respeito da doutrina da justificação”. Foi um passo importantíssimo para curar feridas no seio do cristianismo ocidental, apontar os elementos comuns e reconhecer de forma respeitosa as diferenças entre as duas confissões cristãs sobre esta questão teológica fundamental. No documento se afirma: “Quando os católicos dizem que a pessoa humana coopera por seu consentimento no agir justificante de Deus, eles consideram tal consentimento pessoal como sendo um ato da graça e não o resultado de uma ação onde a pessoa seria capaz disso” (n.20). Ou seja, trata-se de uma resposta ativa do ser humano à proposta divina, possibilitada pela mesma graça. Ora, o termo “corredentora” suscita impecilhos na teologia da Graça, pois põe na sombra o fato de que a cooperação de Maria na obra da salvação é manifestação da graça de Deus.
- O título cria enormes problemas ecumênicos com ortodoxos e protestantes. Para os ortodoxos, um novo dogma mariano aumentaria o fosso de separação, pois dificilmente seria formulado por um concílio ecumênico e obscureceria o grande dogma mariano da Theotókos, aceito por praticamente todas as Igrejas cristãs históricas. Para os protestantes, tal dogma atentaria contra a única mediação de Cristo e a unicidade da sua obra redentora.
Espera-se que os agentes de pastoral, os presbíteros, os teólogos(as), os bispos, as Conferências Episcopais, a Cúria Romana e o Papa tomem consciência da inconveniência de atribuir a Maria o título de “corredentora”. Tanto do ponto de vista pastoral quanto dogmático, é mais sábio utilizar em seu lugar termos menos ambíguos, mais sintonizados com a perspectiva da História da Salvação, no horizonte da “comunhão dos Santos”.
Fonte: Afonso Murad, Maria toda de Deus e tão humana. Compêndio de Mariologia. Paulinas, 2012.