Em
ambientes católicos é comum encontrar pessoas e grupos que atribuem a Maria os
títulos de “corredentora” e “medianeira”. Baseiam-se no fato de existir uma
longa tradição devocional, que justificaria tais títulos. Realmente, esses
foram aplicados a Maria nos últimos dois séculos, inclusive por alguns Papas,
embora não estejam presentes de forma significativa no primeiro milênio, tanto
no oriente quanto no ocidente. Ou seja, não remontam à longa Tradição da
Igreja, mas somente a uma parte dela. Importa também levar em consideração que
certas afirmações sobre Maria não podem ser absolutizadas e retiradas de seu
contexto. Antes, devem ser compreendidas dentro do horizonte em que foram
formuladas, e reelaboradas com a perspectiva da visão mariológica do Capítulo 8
da Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II.
O
problema aflora atualmente quando movimentos marianistas se põem a defender a
criação de novos dogmas marianos, a partir da prática devocional,
desrespeitando e desvalorizando o Concílio Vaticano II, como se ele fosse algo
secundário.
Vejamos
os principais argumentos apresentados a favor de um novo dogma mariano, o da
corredenção, e os argumentos contrários. Para tal síntese, usar-se-á
principalmente o livro “María corredentora? Debate sobre um título mariológico”
de H. Munsterman (Paulus, 2009).
Segundo
seus defensores, o título de Corredentora tem se aplicado à Maria há muito
tempo, aparece com mais clareza e maior frequência no Magistério recente, de
Pio IX a João Paulo II na Encíclica “Redemptoris Mater”, embora não tenha sido
assumido pelo Vaticano II. Maria pode ser chamada com propriedade de
Corredentora em virtude do plano divino de associá-la plenamente à pessoa e à
obra redentora de seu Filho. Maria cooperou com nossa redenção: (1) Crendo nas
palavras do Anjo Gabriel e dando seu “sim” no mistério da encarnação, e (2)
aceitando todos os sofrimentos que experimentou seu filho nas dores da Cruz.
Maria é corredentora porque, abdicando de seus direitos de Mãe, imolou a seu
Filho, oferecendo-o voluntariamente pela salvação da humanidade.
Devido
à associação tão intensa com a obra salvífica de seu filho, pode-se afirmar que
Ela verdadeiramente redimiu a todos e pode ser chamada corredentora do gênero
humano. A corredenção mariana deve ser entendida como uma função subordinada,
especial e extraordinária de Maria na obra salvadora de seu Filho. Mesmo que
Cristo seja o único Mediador, nada impede que haja outros mediadores, com
mediação secundária, subordinada à de Cristo. (Fonte: http://www.escuelacima.com/corredentora.html).
A
pesquisa histórica, no entanto, mostrou que o título “corredentora” não tem
raízes históricas profundas. É praticamente desconhecido na patrística. O
renomado mariólogo René Laurentin, no clássico livro “O título de Corredentora. Estudos históricos. Roma/Paris, Ed. Marianum,
1951 (original em francês), traz informações preciosas sobre o tema. Laurentin
mostra que na idade média alguns autores aplicam o título de “redentora” a
Maria, no sentido de que ela deu à luz ao redentor. Com o desenvolver da
devoção medieval a partir do século XII, a atuação de Maria passa a ser
compreendida também no momento da cruz. Isso gera conflitos, pois redentor na
cruz somente é Jesus. Para diminuir os equívocos, cria-se o termo
“co-redendora”.
Os
dois títulos coexistiram por um bom tempo, praticamente até o século XVIII.
Laurentin sustenta que o título “corredentora” é utilizado durante todos esses
séculos numa pequena minoria de obras e raramente por grandes teólogos. Já no
início do século passado, com o rápido crescimento do marianismo, o termo
ganhou corpo e se encontra disseminado, como em Bover, Roschinni, Kolbe, E.
Stein, Escrivá, Padre Pio... No magistério, a expressão “corredentora” aparece
pela primeira vez num discurso de Pio XI, em 1930. Portanto, não se fundamenta
em fontes consistentes na história da Igreja. É algo relativamente recente, dos
últimos 100 anos.
O
discurso sobre a corredentora se serve de dois grandes argumentos teológicos
pré-conciliares, ligados à teologia da Graça: redenção objetiva e paralelismo
Maria-Eva. Usa-se a distinção entre “redenção objetiva” e “redenção subjetiva”,
proveniente da teologia de M.J. Scheeben. A redenção objetiva refere-se à obra
salvífica de Cristo, consumada na cruz. E a redenção subjetiva diz respeito à
aplicação individual dos efeitos dessa obra a cada cristão e à Igreja. Todos os
fiéis participam da redenção subjetiva, mas somente Maria atua, de “maneira
única e ativa”, na redenção objetiva, por ser a mãe do salvador e sofrer com
ele na cruz.
Este
discurso recupera, num contexto muito diferente do original, o paralelismo
entre Eva e Maria, que aparece em Justino (+165) e Ireneu de Lyon (+202).
Afirma-se que pelo Sim de Maria, no momento da Anunciação, é anulada a queda de
Eva. Neste sentido, Maria coopera na salvação. Ora, basta conhecer um pouco de
teologia bíblica, para constatar a fragilidade do argumento. Maria de Nazaré é
personagem histórico. Eva é figura simbólico-mitológica, pois não existiu como
pessoa. Tal paralelismo foi útil no século II. Hoje, se mostra anacrônico,
impreciso do ponto de vista linguístico, além de trazer consigo um ranço
patriarcal e machista, ao culpabilizar a mulher pela origem do mal no mundo.
Hendro
Munsterman, no livro citado (Maria corredentora, Paulus, 2009, p. 71-89) elenca
argumentos contra o uso do termo corredentora.
Apresentamos aqui uma síntese e reelaboração do pensamento do autor. Quais
seriam os inconvenientes do termo “corredentora”, aplicado a Maria?
-
O título fere a unicidade da redenção
realizada por Cristo. A Bíblia é clara: redentor e salvador, somente Jesus!
(1 Tm 2,5; At 4,12). Do ponto de vista puramente lexical, o termo coredemptrix
é problemático e ambíguo. Mesmo que se diga que o prefixo “co” não significa
estar no mesmo nível de Jesus, a imprecisão permanece.
-
O titulo é ambíguo. Nas nossas
línguas modernas, o prefixo “co” em grande parte das palavras significa ou
subentende uma igualdade entre duas entidades. Por exemplo: coproprietário,
coassociado... Tal imprecisão semântica deixa margem para pensar que Maria não
é salva por Cristo, pois ela ajuda a Cristo no processo de redenção. Quando um
determinado termo ou conceito necessita de muita explicação, é sinal de
inadequação. E não se trata somente da interpretação dada ao prefixo “co”. Os
termos “redenção” e “salvação” representam doutrinas precisas. Já a idéia de
corredenção não goza de consenso de interpretação.
- Ele Torna
obscuro o papel do Espírito Santo. Na realidade, quem atua como
“corredentor” é o Espírito Santo, que realiza nos corações o encontro salvífico
do cristão com o Pai e o Filho. Ao transferir tal atribuição para Maria, se
olvida esta tarefa do Espírito.
- O conteúdo de
“corredentora” reflete um sistema teológico ultrapassado. Segundo W.
Beinert, a dificuldade de refletir sobre este tema reside na teologia
(neo)escolástica, que reduziu a conceitos o que os Padres da Igreja escreveram
em linguagem imaginária e simbólica. Quando Ireneu diz que “Maria é causa de
salvação para o gênero humano”, não está fazendo uma afirmação dogmática. Mas
foi (e ainda é) interpretado assim. Por isso, é melhor recorre ao método da
História da Salvação, preconizado pelo Vaticano II, do que se enredar em
conceitos prévios, que por vezes são ambíguos e inoperantes.
-“Corredentora”
serve à mariologia desequilibradamente maximalista. No século
passado, o título situava Maria como coadjuvante de Jesus, na assim chamada
“redenção objetiva”. Com a virada do Vaticano II, a tendência inicial consistiu
em enfatizar a participação de Maria na “redenção subjetiva”, enquanto modelo
da Igreja. De uma mariologia predominantememente cristotípica (em comparação
com Cristo) passou-se para uma eclesiotípica (em relação com a Igreja). No
entanto, o neoconservadorismo supervaloriza a Igreja, no processo de redenção.
E Maria, também. O título corredentora serve a este propósito.
-
A argumentação fundamenta-se pouco na
bíblia e na patrística e privilegia testemunho de videntes e determinada
interpretação dos papas. Basta ler os escritos dos movimentos marianos que
defendem mais este dogma para perceber que a construção de sua doutrina se
baseia numa leitura prototípica do Antigo Testamento, sem levar em conta a
contribuição da teologia bíblica, faz uma leitura escolástica dos padres da
Igreja (paralelismo Eva e Maria), não levando em conta sua linguagem simbólico-alegórica,
e se serve de textos de papas da era mariana (e João Paulo II). Para completar,
usam o argumento de videntes recentes, como Ida Peerdeman, que em suas
mensagens dizem “Maria solicita a definição de um novo dogma!”
-
O título nega o acordo de católicos e
luteranos sobre a justificação. Em 1999, a Igreja católica e Federação
luterana mundial assinaram a “Declaração comum a respeito da doutrina da
justificação”. Foi um passo importantíssimo para curar feridas no seio do
cristianismo ocidental, apontar os elementos comuns e reconhecer de forma
respeitosa as diferenças entre as duas confissões cristãs sobre esta questão
teológica fundamental. No documento se afirma: “Quando os católicos dizem que a
pessoa humana coopera por seu consentimento no agir justificante de Deus, eles
consideram tal consentimento pessoal como sendo um ato da graça e não o
resultado de uma ação onde a pessoa seria capaz disso” (n.20). Ou seja,
trata-se de uma resposta ativa do ser humano à proposta divina, possibilitada pela
mesma graça. Ora, o termo “corredentora” suscita impecilhos na teologia da
Graça, pois põe na sombra o fato de que a cooperação de Maria na obra da
salvação é manifestação da graça de Deus.
- O título cria
enormes problemas ecumênicos com ortodoxos e protestantes. Para os
ortodoxos, um novo dogma mariano aumentaria o fosso de separação, pois
dificilmente seria formulado por um concílio ecumênico e obscureceria o grande
dogma mariano da Theotókos, aceito por praticamente todas as Igrejas cristãs
históricas. Para os protestantes, tal dogma atentaria contra a única mediação
de Cristo e a unicidade da sua obra redentora.
Espera-se
que os agentes de pastoral, os presbíteros, os teólogos(as), os bispos, as
Conferências Episcopais, a Cúria Romana e o Papa tomem consciência da
inconveniência de atribuir a Maria o título de “corredentora”. Tanto do ponto
de vista pastoral quanto dogmático, é mais sábio utilizar em seu lugar termos
menos ambíguos, mais sintonizados com a perspectiva da História da Salvação, no
horizonte da “comunhão dos Santos”.
Fonte: Afonso Murad, Maria toda de Deus e tão humana. Compêndio de Mariologia. Paulinas, 2012.