Afonso Murad - Publicado na
Revista Convergência, Maio 2013, XLVIII, Nº 461; ISSN 0010-8162; páginas 265-272
Maria é uma pessoa especial,
a quem reconhecemos como Mãe de Jesus e nossa Mãe na fé. Nela vemos os traços
da perfeita seguidora de Jesus. Para Maria dirigimos nossa oração com afeto; a
ela recorremos em muitos momentos da vida. A partir da existência cristã,
situada no mundo contemporâneo, se colocam várias perguntas diante da relação
filial e devocional para a mãe de Jesus: qual é o limite da devoção mariana?
Como ela se associa à centralidade de Jesus? Qual é o lugar de Maria no culto
cristão? Existem pontos comuns entre a visão católica de Maria e a de outras
Igrejas cristãs?
Examinaremos como o Concílio
Vaticano II abordou estas questões, no Capítulo 8 da Constituição Dogmática Lumen Gentium. Tal visão sobre Maria foi
fruto de longo processo de diálogo, discussão, reflexão, oração, concessões
entre as correntes em conflito, até alcançar consenso. Por que tanta
dificuldade? Durante muitos séculos a Igreja católica enalteceu de tal forma a
pessoa de Maria, que se perdeu o necessário equilíbrio com a figura de Jesus.
Maria foi elevada ao máximo. Esta era a idéia reinante: quanto mais se falasse
de Maria e se exaltasse os seus privilégios, o que ela tem a mais do que nós, melhor
seria. Tratava-se do “maximalista”. Em reação a tal tendência, o Concilio quis
recolocar Maria no seu lugar. Nem mais, nem menos. O lugar legítimo que ela
merece.
1. Capítulo 8 da Lumen Gentium
Em primeiro lugar, vale recordar, o Concílio rejeitou
a proposta de fazer um documento exclusivo sobre a mãe de Jesus. Preferiu
inserir Maria “no mistério de Cristo e da Igreja”. Esta é a grande chave de
interpretação do Vaticano II. Maria não é considerada de maneira isolada, como
a santa poderosa, a rainha e a intercessora infalível, mas sim no contexto da
História da Salvação, em relação a Jesus e como referência para a comunidade de
seus seguidores e seguidoras. O documento Conciliar apresenta o seguinte
esquema:
1. Introdução (52-54)
2. A missão de Maria na História da salvação (55-59)
3. Maria e a Igreja (60-65)
4. O culto a Maria na Igreja (66-67)
5. Conclusão: Maria, sinal de esperança para o Povo de
Deus peregrino (68-69).
Na introdução, diz-se que o Concílio não propõe a doutrina completa
sobre Maria, nem quer resolver as questões ainda não trazidas à plena luz pelo
trabalho dos teólogos (LG 54). Evitam-se títulos exagerados ou controversos. Os
Padres Conciliares reconhecem Maria como “Mãe dos membros de Cristo, porque
cooperou pela caridade para que na Igreja nascessem os fiéis que são membros
desta Cabeça” (LG 53). Situam Maria na Comunhão dos Santos, e não de forma
isolada. Ela “ocupa na Igreja o lugar mais alto depois de Cristo e o mais perto
de nós” (LG 54). Aqui reside uma das pérolas da visão conciliar. Diríamos em
linguagem afetiva: “Maria está tão perto de Deus quanto está pertinho de nós”.
O fato de ser glorificada não significa que ela tenha se distanciado de nós, ao
contrário.
Vejamos agora as principais afirmações da primeira parte do documento. Aqui o Concílio apresenta Maria a partir da Bíblia, sua missão na História da Salvação. O Capítulo 8 da Lumen Gentium é original pela forma como resgata a contribuição da Teologia Bíblica, que não era considerada no discurso sobre Maria nos últimos séculos. Aliás, nem havia teologia bíblica ainda. Rejeitaram-se os exageros da apologética mariana, que usava citações bíblicas de forma alegórica e fora de seu contexto, simplesmente para ilustrar o que já se afirmava antes. Optou-se por uma visão sistêmica, a partir da História da Salvação. Assim, diz-se que no Antigo Testamento, Maria é “profeticamente esboçada como a mulher que vence a serpente, a Virgem mãe do Emanuel, uma dos pobres de Javé e a Filha de Sião” (LG 55).
Ao trazer à luz os textos dos
Evangelhos sobre a Mãe de Jesus, o concílio traça um perfil dinâmico de Maria. Afirma
que na Anunciação, Maria não é um instrumento meramente passivo, mas cooperou
para a salvação humana com livre fé e obediência (LG 56). A união entre Mãe e
Filho na obra da salvação é um processo,
que se estende da concepção virginal até a morte de Cristo (LG 57).
A grande novidade, depois de
tantos séculos de exaltação a Maria, como a santa prontinha, acabada e perfeita
desde o nascimento, reside nesta afirmação: No
ministério público de Jesus, Maria avançou em peregrinação de fé, de Caná até a
cruz (LG 58).
O documento conciliar encerra
suas considerações sobre Maria na Bíblia e dá um salto para a linguagem
devocional e dogmática: Em Pentecostes e
na Assunção, para que mais plenamente estivesse conforme o seu Filho, foi
exaltada como Rainha do Universo (LG 59).
A terceira parte do documento aborda a relação de Maria com Jesus e a Igreja. O Concílio Vaticano II responde com clareza a esta pergunta dogmático-pastoral: Se Jesus é o único mediador entre Deus e a humanidade, como compreender então a intercessão dos santos e especialmente a de Maria? Conforme o documento conciliar, Cristo é o único mediador. A missão materna de Maria não diminui a mediação única de Cristo, mas mostra a sua potência. Não se origina de uma necessidade interna, mas do dom de Deus. Não impede, mas favorece a união dos fiéis com Cristo (LG 60). Nenhuma criatura jamais pode ser colocada no mesmo plano do Verbo encarnado e redentor. Mas o sacerdócio de Cristo é participado de vários modos pelo povo de Deus e a bondade de Deus é difundida nas criaturas. A única mediação do Redentor suscita nas criaturas uma variada cooperação, que participa de uma única fonte (LG 62). O concílio reconhece a legitimidade de recorrer à intercessão de Maria, pois se trata de cooperação na única mediação de Cristo. Não se utiliza a expressão “medianeira”, que é ambígua e pode ser maximalista.
Com isso, se passa à quarta parte do documento conciliar sobre a Mãe de Jesus, que trata da legitimidade e dos limites do culto a Maria na Igreja. Conforme o Capítulo 8 da Lumen Gentium, a colaboração de Maria não está no mesmo plano da missão redentora de Jesus. Situa-se em função desta missão e dela depende incondicionalmente. O culto a Maria é singular, diferindo e se orientando para o culto à Trindade (LG 66). Assim se resume a visão equilibrada e sábia do Vaticano II:
“Recomenda-se o culto à
Maria, evitando tantos os exageros quanto a demasiada estreiteza de espírito. A
verdadeira devoção à Maria não consiste num estéril e transitório afeto, nem
numa vã credulidade, mas no reconhecimento da figura de Maria e no seguimento
de suas virtudes” (LG 67).
No que diz respeito à relação
de Maria com a Igreja, o Concílio mostra que ela é membro, símbolo e mãe da Igreja,
a partir de sua relação ímpar com Jesus. Não se trata somente da maternidade. Maria
é mãe, companheira e serva do Senhor,
tornando-se assim para nós mãe, na ordem da graça (LG 61). Devido à sua
maternidade, à união de missão com Cristo e às suas singulares graças e
funções, Maria está também intimamente relacionada com a Igreja (LG 63). Como
Maria, a Igreja é mãe e virgem: gera novos filhos pelo batismo, guarda a
palavra dada ao Esposo, vive na fé, esperança e caridade (LG 64).
A Lumen Gentium, Constituição Dogmática do Vaticano II sobre a Igreja, encerra-se com uma bela imagem acerca de Maria, sinal para o Povo de Deus peregrino. Distanciando-se do discurso triunfalista dos privilégios marianos, apresenta a Mãe de Jesus como figura realizada do cristão e da Igreja:
Maria assunta ao Céu é a imagem e o começo da Igreja
como deverá ser consumada no tempo futuro. Assim também brilha aqui na terra
como sinal de esperança segura e do conforto para o povo de Deus em
peregrinação, até que chegue o dia do Senhor (LG 68).
2. A
contribuição do Concílio para uma visão atual sobre Maria
Sintetizemos em breves frases
a contribuição do Vaticano II para uma visão atual acerca de Maria.
- Apresenta a Mãe de Jesus
não de maneira isolada, mas sim em interdependência com Cristo e a comunidade
de seus seguidores, a Igreja.
- Traz nova luz para os
dogmas marianos e o culto a Maria, a partir da História da Salvação e da
teologia bíblica.
- Mostra que é possível e
necessário elaborar o discurso mariano de maneira equilibrada, lúcida e
contemporânea, que evite a lógica exclusiva dos “privilégios de Maria”.
- Não encerra a reflexão
sobre Maria num tratado fechado e nem pretende responder a tudo. Antes,
estimula os teólogos(as) a continuar seus estudos, para esclarecer e aprofundar
os temas em fase de maturação (cf. LG 54). A partir do espírito do Concílio, os
teólogos e teólogas não são considerados como meros repetidores do magistério
da Igreja. Em comunhão com a Bíblia, a Tradição, o magistério e os Sinais dos
Tempos, eles(as) tem a missão de contribuir para o avanço da teologia mariana
na Igreja.
- A reflexão sobre Maria articula-se
principalmente com textos bíblicos e patrísticos. Não há referências explícitas
aos tradicionais tratados de devoção a Maria dos últimos cinco séculos, em
grande parte marcados pelo maximalismo (exagero mariano).
- Ignoram-se as mensagens de
videntes e de aparições. Simplesmente,
não se fala delas, pois apresentam caráter devocional e não dogmático.
- O documento amplia as
características bíblico-teológicas de Maria. Nos últimos séculos, seu perfil
ficou restrito praticamente a três elementos: o sim da anunciação, a
maternidade biológica, a união com o filho no momento da cruz. O Concílio
descortina outras características, tais como: companheira e servidora de Jesus
(LG 61), mulher que avança em peregrinação na fé, de Caná até a cruz (LG 58).
- Põe as bases teológicas
necessárias para superar a ambiguidade de títulos marianos como “medianeira” e
“corredentora”. Sem meias palavras, reafirma-se o dado bíblico central: “Jesus
é o único mediador”. Maria e os Santos cooperam na missão salvífica de Jesus.
Tal cooperação não os colocam no mesmo nível de Jesus.
- Aponta as múltiplas e
complementares formas de relação de Maria com a comunidade dos seguidores de
Jesus. Maria é simultaneamente membro, mãe e protótipo da Igreja.
- O Concílio alerta sobre os
equívocos dos extremos do minimalismo (subtrair a presença de Maria do
cotidiano dos católicos) e do maximalismo (devocionismo que se afasta da
centralidade de Jesus). Nem toda forma de devoção mariana é saudável.
Critica-se o afeto estéril e transitório e a vã credulidade. Valoriza-se conhecer e
inspirar-se nos traços do perfil bíblico-espiritual de Maria.
Conclusões abertas
A reflexão sobre Maria
avançou muito nos últimos anos. Felizmente, o quadro é tão amplo e
enriquecedor, que merece, no mínimo, outro artigo. Do ponto de vista do
magistério da Igreja, destaca-se a ousada posição de Paulo VI na “Marialis
Cultus”. Em nosso continente, ganham expressão as afirmações dos Documentos de
Puebla e de Aparecida. Teólogos e teólogas redescobrem o rosto bíblico de Maria
a partir dos Evangelhos de Lucas e de João: perfeita discípula de Jesus,
peregrina na fé, sinal da opção preferencial pelos pobres, mulher, mãe da
comunidade, perseverante na fé até a cruz. Na pastoral, incentiva-se a
percorrer o caminho humano de Maria, em consonância com Jesus, que é O caminho.
Percebe-se que a Maria glorificada é a mulher de Nazaré, caminhante da fé,
conosco.
Tais descobertas, tão
importantes, incitam os religiosos(as), os leigos(as) e os presbíteros a manterem
o equilíbrio na devoção mariana e a cultivar a centralidade de Jesus na vida de
fé. Tal postura exige, em muitos casos, denunciar o equívoco de devoções
exageradas, que atentam até contra o bom senso. E, principalmente, propor
expressões cultuais de acordo com o espírito do Concílio. Para as congregações
que cultivam devoções marianas tradicionais, é necessário discernir os
elementos originais daqueles que foram expressão de uma época já passada e
perderam significado. A devoção mariana é boa e saudável, se considera
devidamente a Maria dentro do mistério de Cristo e da Igreja, como anunciou o
Concílio. Que tenhamos a lucidez de realizar as mudanças necessárias e superar um
devocionismo “vão e estéril”, como diz o texto conciliar.
A grande virada consiste em
voltar à Maria dos Evangelhos. E, a partir daí, dosar a intensidade e
reelaborar as expressões devocionais, que agora devem estar marcadas por uma
espiritualidade encarnada e trinitária.
Certa vez me pediram para
atualizar a Salve Rainha, uma oração bonita, mas com elementos teológicos
anacrônicos. Partilho com você, caro leitor(a), esta prece transformada em
canto, com a melodia do Padre Joãozinho, na esperança de estimular iniciativas
similares.
Salve Rainha
Mãe, educadora,
seguidora de Jesus
filha querida do
Deus misericórdia
Sinal humano da
Trindade:
Vida, doçura e
esperança nossa, salve.
A ti clamamos,
os filhos da Terra.
Contigo nos
alegramos nas conquistas do Amor,
E suspiramos,
gemendo e chorando nos momentos de dor.
Volta o teu olhar
para nós os filhos teus
E mostra-nos Jesus
O Filho de Deus!
Amém!