segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Maria a partir do Vaticano II

Afonso Murad - Publicado na Revista Convergência, Maio 2013, XLVIII, Nº 461; ISSN 0010-8162; páginas 265-272

Maria é uma pessoa especial, a quem reconhecemos como Mãe de Jesus e nossa Mãe na fé. Nela vemos os traços da perfeita seguidora de Jesus. Para Maria dirigimos nossa oração com afeto; a ela recorremos em muitos momentos da vida. A partir da existência cristã, situada no mundo contemporâneo, se colocam várias perguntas diante da relação filial e devocional para a mãe de Jesus: qual é o limite da devoção mariana? Como ela se associa à centralidade de Jesus? Qual é o lugar de Maria no culto cristão? Existem pontos comuns entre a visão católica de Maria e a de outras Igrejas cristãs?
Examinaremos como o Concílio Vaticano II abordou estas questões, no Capítulo 8 da Constituição Dogmática Lumen Gentium. Tal visão sobre Maria foi fruto de longo processo de diálogo, discussão, reflexão, oração, concessões entre as correntes em conflito, até alcançar consenso. Por que tanta dificuldade? Durante muitos séculos a Igreja católica enalteceu de tal forma a pessoa de Maria, que se perdeu o necessário equilíbrio com a figura de Jesus. Maria foi elevada ao máximo. Esta era a idéia reinante: quanto mais se falasse de Maria e se exaltasse os seus privilégios, o que ela tem a mais do que nós, melhor seria. Tratava-se do “maximalista”. Em reação a tal tendência, o Concilio quis recolocar Maria no seu lugar. Nem mais, nem menos. O lugar legítimo que ela merece.

1.    Capítulo 8 da Lumen Gentium
Em primeiro lugar, vale recordar, o Concílio rejeitou a proposta de fazer um documento exclusivo sobre a mãe de Jesus. Preferiu inserir Maria “no mistério de Cristo e da Igreja”. Esta é a grande chave de interpretação do Vaticano II. Maria não é considerada de maneira isolada, como a santa poderosa, a rainha e a intercessora infalível, mas sim no contexto da História da Salvação, em relação a Jesus e como referência para a comunidade de seus seguidores e seguidoras. O documento Conciliar apresenta o seguinte esquema:
1. Introdução (52-54)
2. A missão de Maria na História da salvação (55-59)
3. Maria e a Igreja (60-65)
4. O culto a Maria na Igreja (66-67)
5. Conclusão: Maria, sinal de esperança para o Povo de Deus peregrino (68-69).

Na introdução, diz-se que o Concílio não propõe a doutrina completa sobre Maria, nem quer resolver as questões ainda não trazidas à plena luz pelo trabalho dos teólogos (LG 54). Evitam-se títulos exagerados ou controversos. Os Padres Conciliares reconhecem Maria como “Mãe dos membros de Cristo, porque cooperou pela caridade para que na Igreja nascessem os fiéis que são membros desta Cabeça” (LG 53). Situam Maria na Comunhão dos Santos, e não de forma isolada. Ela “ocupa na Igreja o lugar mais alto depois de Cristo e o mais perto de nós” (LG 54). Aqui reside uma das pérolas da visão conciliar. Diríamos em linguagem afetiva: “Maria está tão perto de Deus quanto está pertinho de nós”. O fato de ser glorificada não significa que ela tenha se distanciado de nós, ao contrário.

Vejamos agora as principais afirmações da primeira parte do documento. Aqui o Concílio apresenta Maria a partir da Bíblia, sua missão na História da Salvação. O Capítulo 8 da Lumen Gentium é original pela forma como resgata a contribuição da Teologia Bíblica, que não era considerada no discurso sobre Maria nos últimos séculos. Aliás, nem havia teologia bíblica ainda. Rejeitaram-se os exageros da apologética mariana, que usava citações bíblicas de forma alegórica e fora de seu contexto, simplesmente para ilustrar o que já se afirmava antes. Optou-se por uma visão sistêmica, a partir da História da Salvação. Assim, diz-se que no Antigo Testamento, Maria é “profeticamente esboçada como a mulher que vence a serpente, a Virgem mãe do Emanuel, uma dos pobres de Javé e a Filha de Sião” (LG 55).
Ao trazer à luz os textos dos Evangelhos sobre a Mãe de Jesus, o concílio traça um perfil dinâmico de Maria. Afirma que na Anunciação, Maria não é um instrumento meramente passivo, mas cooperou para a salvação humana com livre fé e obediência (LG 56). A união entre Mãe e Filho na obra da salvação é um processo, que se estende da concepção virginal até a morte de Cristo (LG 57).
A grande novidade, depois de tantos séculos de exaltação a Maria, como a santa prontinha, acabada e perfeita desde o nascimento, reside nesta afirmação: No ministério público de Jesus, Maria avançou em peregrinação de fé, de Caná até a cruz (LG 58).
O documento conciliar encerra suas considerações sobre Maria na Bíblia e dá um salto para a linguagem devocional e dogmática: Em Pentecostes e na Assunção, para que mais plenamente estivesse conforme o seu Filho, foi exaltada como Rainha do Universo (LG 59).

A terceira parte do documento aborda a relação de Maria com Jesus e a Igreja. O Concílio Vaticano II responde com clareza a esta pergunta dogmático-pastoral: Se Jesus é o único mediador entre Deus e a humanidade, como compreender então a intercessão dos santos e especialmente a de Maria?  Conforme o documento conciliar, Cristo é o único mediador. A missão materna de Maria não diminui a mediação única de Cristo, mas mostra a sua potência. Não se origina de uma necessidade interna, mas do dom de Deus. Não impede, mas favorece a união dos fiéis com Cristo (LG 60). Nenhuma criatura jamais pode ser colocada no mesmo plano do Verbo encarnado e redentor. Mas o sacerdócio de Cristo é participado de vários modos pelo povo de Deus e a bondade de Deus é difundida nas criaturas. A única mediação do Redentor suscita nas criaturas uma variada cooperação, que participa de uma única fonte (LG 62). O concílio reconhece a legitimidade de recorrer à intercessão de Maria, pois se trata de cooperação na única mediação de Cristo. Não se utiliza a expressão “medianeira”, que é ambígua e pode ser maximalista.

Com isso, se passa à quarta parte do documento conciliar sobre a Mãe de Jesus, que trata da legitimidade e dos limites do culto a Maria na Igreja. Conforme o Capítulo 8 da Lumen Gentium, a colaboração de Maria não está no mesmo plano da missão redentora de Jesus. Situa-se em função desta missão e dela depende incondicionalmente. O culto a Maria é singular, diferindo e se orientando para o culto à Trindade (LG 66). Assim se resume a visão equilibrada e sábia do Vaticano II:
Recomenda-se o culto à Maria, evitando tantos os exageros quanto a demasiada estreiteza de espírito. A verdadeira devoção à Maria não consiste num estéril e transitório afeto, nem numa vã credulidade, mas no reconhecimento da figura de Maria e no seguimento de suas virtudes” (LG 67).
No que diz respeito à relação de Maria com a Igreja, o Concílio mostra que ela é membro, símbolo e mãe da Igreja, a partir de sua relação ímpar com Jesus. Não se trata somente da maternidade. Maria é mãe, companheira e serva do Senhor, tornando-se assim para nós mãe, na ordem da graça (LG 61). Devido à sua maternidade, à união de missão com Cristo e às suas singulares graças e funções, Maria está também intimamente relacionada com a Igreja (LG 63). Como Maria, a Igreja é mãe e virgem: gera novos filhos pelo batismo, guarda a palavra dada ao Esposo, vive na fé, esperança e caridade (LG 64).

A Lumen Gentium, Constituição Dogmática do Vaticano II sobre a Igreja, encerra-se com uma bela imagem acerca de Maria, sinal para o Povo de Deus peregrino. Distanciando-se do discurso triunfalista dos privilégios marianos, apresenta a Mãe de Jesus como figura realizada do cristão e da Igreja:
Maria assunta ao Céu é a imagem e o começo da Igreja como deverá ser consumada no tempo futuro. Assim também brilha aqui na terra como sinal de esperança segura e do conforto para o povo de Deus em peregrinação, até que chegue o dia do Senhor (LG 68).

2.      A contribuição do Concílio para uma visão atual sobre Maria
Sintetizemos em breves frases a contribuição do Vaticano II para uma visão atual acerca de Maria.
- Apresenta a Mãe de Jesus não de maneira isolada, mas sim em interdependência com Cristo e a comunidade de seus seguidores, a Igreja.
- Traz nova luz para os dogmas marianos e o culto a Maria, a partir da História da Salvação e da teologia bíblica.
- Mostra que é possível e necessário elaborar o discurso mariano de maneira equilibrada, lúcida e contemporânea, que evite a lógica exclusiva dos “privilégios de Maria”.
- Não encerra a reflexão sobre Maria num tratado fechado e nem pretende responder a tudo. Antes, estimula os teólogos(as) a continuar seus estudos, para esclarecer e aprofundar os temas em fase de maturação (cf. LG 54). A partir do espírito do Concílio, os teólogos e teólogas não são considerados como meros repetidores do magistério da Igreja. Em comunhão com a Bíblia, a Tradição, o magistério e os Sinais dos Tempos, eles(as) tem a missão de contribuir para o avanço da teologia mariana na Igreja.
- A reflexão sobre Maria articula-se principalmente com textos bíblicos e patrísticos. Não há referências explícitas aos tradicionais tratados de devoção a Maria dos últimos cinco séculos, em grande parte marcados pelo maximalismo (exagero mariano).
- Ignoram-se as mensagens de videntes e de aparições.  Simplesmente, não se fala delas, pois apresentam caráter devocional e não dogmático.
- O documento amplia as características bíblico-teológicas de Maria. Nos últimos séculos, seu perfil ficou restrito praticamente a três elementos: o sim da anunciação, a maternidade biológica, a união com o filho no momento da cruz. O Concílio descortina outras características, tais como: companheira e servidora de Jesus (LG 61), mulher que avança em peregrinação na fé, de Caná até a cruz (LG 58).
- Põe as bases teológicas necessárias para superar a ambiguidade de títulos marianos como “medianeira” e “corredentora”. Sem meias palavras, reafirma-se o dado bíblico central: “Jesus é o único mediador”. Maria e os Santos cooperam na missão salvífica de Jesus. Tal cooperação não os colocam no mesmo nível de Jesus.
- Aponta as múltiplas e complementares formas de relação de Maria com a comunidade dos seguidores de Jesus. Maria é simultaneamente membro, mãe e protótipo da Igreja.
- O Concílio alerta sobre os equívocos dos extremos do minimalismo (subtrair a presença de Maria do cotidiano dos católicos) e do maximalismo (devocionismo que se afasta da centralidade de Jesus). Nem toda forma de devoção mariana é saudável. Critica-se o afeto estéril e transitório e a vã credulidade. Valoriza-se conhecer e inspirar-se nos traços do perfil bíblico-espiritual de Maria.

Conclusões abertas
A reflexão sobre Maria avançou muito nos últimos anos. Felizmente, o quadro é tão amplo e enriquecedor, que merece, no mínimo, outro artigo. Do ponto de vista do magistério da Igreja, destaca-se a ousada posição de Paulo VI na “Marialis Cultus”. Em nosso continente, ganham expressão as afirmações dos Documentos de Puebla e de Aparecida. Teólogos e teólogas redescobrem o rosto bíblico de Maria a partir dos Evangelhos de Lucas e de João: perfeita discípula de Jesus, peregrina na fé, sinal da opção preferencial pelos pobres, mulher, mãe da comunidade, perseverante na fé até a cruz. Na pastoral, incentiva-se a percorrer o caminho humano de Maria, em consonância com Jesus, que é O caminho. Percebe-se que a Maria glorificada é a mulher de Nazaré, caminhante da fé, conosco.
Tais descobertas, tão importantes, incitam os religiosos(as), os leigos(as) e os presbíteros a manterem o equilíbrio na devoção mariana e a cultivar a centralidade de Jesus na vida de fé. Tal postura exige, em muitos casos, denunciar o equívoco de devoções exageradas, que atentam até contra o bom senso. E, principalmente, propor expressões cultuais de acordo com o espírito do Concílio. Para as congregações que cultivam devoções marianas tradicionais, é necessário discernir os elementos originais daqueles que foram expressão de uma época já passada e perderam significado. A devoção mariana é boa e saudável, se considera devidamente a Maria dentro do mistério de Cristo e da Igreja, como anunciou o Concílio. Que tenhamos a lucidez de realizar as mudanças necessárias e superar um devocionismo “vão e estéril”, como diz o texto conciliar.
A grande virada consiste em voltar à Maria dos Evangelhos. E, a partir daí, dosar a intensidade e reelaborar as expressões devocionais, que agora devem estar marcadas por uma espiritualidade encarnada e trinitária.
Certa vez me pediram para atualizar a Salve Rainha, uma oração bonita, mas com elementos teológicos anacrônicos. Partilho com você, caro leitor(a), esta prece transformada em canto, com a melodia do Padre Joãozinho, na esperança de estimular iniciativas similares.

Salve Rainha
Mãe, educadora, seguidora de Jesus
filha querida do Deus misericórdia
Sinal humano da Trindade:
Vida, doçura e esperança nossa, salve.
A ti clamamos,
os filhos da Terra.
Contigo nos alegramos nas conquistas do Amor,
E suspiramos, gemendo e chorando nos momentos de dor.
Volta o teu olhar para nós os filhos teus
E mostra-nos Jesus
O Filho de Deus!

Amém!