Faz alguns anos, escrevi um livro intitulado “Visões e Aparições. Deus continua falando?”, publicado pela Editora Vozes. Nesta obra, apresento o fenômeno sob vários ângulos: psicológico (e parapsicológico), sócio-cultural, teológico e pastoral. Para escrever o livro, empreendi um longo e penoso trabalho de escuta atenta e humilde. Li o que encontrei sobre a análise teológica do evento e os critérios eclesiais de discernimento. Tive acesso a livros e manuscritos com mensagens de videntes do Brasil e do exterior. Mediante pedidos, vi filmagens de várias pretensas aparições. Visitei alguns videntes e conversei com pessoas que eram defensores incondicionais do fenômeno. Conversei com teólogos e místicos.
A conclusão a que cheguei é que as chamadas “Aparições” movem-se no campo da atualização da revelação e das múltiplas formas de expressão da experiência mística. Por isso mesmo, são denominadas na teologia clássica católica como “revelações privadas”, mesmo que aconteçam para uma multidão de milhares de pessoas. E como tal, merecem respeito e consideração.
A vidência, como outros fenômenos místicos paranormais, pode ser um serviço à comunidade eclesial e ao mundo, enquanto interpretação e atualização da mensagem de Jesus, a revelação plena do Pai para os cristãos. Mas não tem força de obrigação para ninguém. Por isso, nenhum cristão católico é obrigado a crer em aparições, mesmo aquelas reconhecidas pela Igreja, como Guadalupe, Fátima e Lurdes. O parecer oficial da autoridade eclesial é claro: o fenômeno e sua mensagem é “digno de fé humana”, ou seja: não se trata de uma verdade que obrigue os fiéis. Mas, se alguém quer acolher a mensagem dos videntes e reverenciar Maria com o nome que eles lhe deram, pode fazê-lo com serenidade.
Fazia tempo que não me dedicava mais a pesquisar sobre o assunto. No ano passado, fui procurado por uma repórter do revista VEJA, que fazia uma cobertura sobre o assunto. Neste ano, foi a vez da ISTO É. Então, voltei a ler sobre o tema, com um pouco mais de distanciamento. Comecei também a pesquisar na Internet, pois muitos videntes divulgam as mensagens na WEB. E trabalhei com meus alunos sobre isso na aula de mariologia.
Um dos problemas mais complicados para o discernimento atual sobre as aparições diz respeito à sua continuidade no tempo. Até o fenômeno de Fátima, os videntes tinham uma experiência sensível, traduzida em mensagens, que se encerrava após um curto período. No caso dos videntes portugueses, as “revelações” aconteceram de maio a outubro do mesmo ano e depois acabaram. Assim, foi possível analisar a mensagem e dar um parecer oficial. Ora, nos casos atuais, as pretensas aparições não terminam. Maria “fala” a cada semana, com hora marcada, para videntes de várias partes do mundo. Ora, isso levanta algumas perguntas sérias: não seria uma banalização do sagrado? Como emitir um parecer eclesial sobre um fenômeno que ainda está acontecendo? Que qualidade espiritual tem um conjunto de visões e mensagens, que ano após ano, repete sempre a mesma cantilena: “rezem o terço, participem dos sacramentos, façam penitência...”? A história recente da humanidade traz novas questões: ecologia, diálogo ou intolerância religiosa, cultura da imagem, crise econômica em algumas partes do mundo, acentos na experiência religiosa, questões de gênero, mas as mensagens mudam muito pouco. Será que Maria não tem nada a dizer sobre isso? As mensagens dos videntes atuais são mais fracas naquilo que deveria ser seu diferencial qualitativo: uma atualização significativa da revelação de Deus, em Cristo, para os dias de hoje.
O que é mais grave é que alguns movimentos aparicionistas vendem a ilusão de que suas mensagens são as únicas corretas e perfeitas, pois são comunicação direta do céu, sem se contaminar com as ideologias humanas. Eu mostrei no livro, com várias evidências, como as mensagens dos videntes sofrem uma série de influências e estão submetidas a vários condicionamentos. Não levar isso em conta é correr o sério risco de divinizar manifestações humanas de pouca consistência espiritual.
Se a Bíblia, Palavra de Deus em linguagem humana, não pode ser lida de forma literal, mas necessita de uma interpretação, com muito mais razão se exige isso das mensagens de videntes.
No mês de junho acessei várias páginas da internet de movimentos aparicionistas. A impressão que tive é que há uma degeneração espiritual em muitos deles. Ou seja, perde-se o núcleo da experiência religiosa cristã, que é o seguimento de Jesus, e acontece um acento unilateral em práticas devocionais, mescladas com uma mentalidade apocalíptica baseada no medo. Num dos sites que visitei, havia uma recomendação do vidente (que ele atribui a Maria) para confeccionar um “lencinho de Nossa Senhora”, que seria a arma mais poderosa para preparar os católicos diante da eminência do fim do mundo. Em outro site, encontrei um título animador: “como rezar”. Respirei aliviado. Imaginei que seriam algumas dicas sobre a leitura com a bíblia, sobre a revisão de vida, ou alguma orientação concreta para orar no cotidiano, com suas alegrias e tristezas, decepções e conquistas. Ao abrir o tema, outra decepção: era simplesmente uma colagem com as orações tradicionais católicas (Pai Nosso, Ave Maria, Credo), seguidas de outras orações vocais de conteúdo duvidoso. E tudo atribuído a Maria. Que estranho: Maria ensinaria somente a rezar com fórmulas? Todo o movimento de rezar com o coração, de maneira espontânea, não tem valor? E a oração com a bíblia seria desconhecida por ela?
Registro aqui este alerta, eivado de perplexidade e indignação. Nem tudo o que acontece no âmbito do extraordinário é o melhor caminho para viver o Evangelho de Jesus. Espero que os movimentos aparicionistas cresçam em lucidez. Não basta uma religiosidade intensa. Ela necessita equilíbrio, diálogo e centramento em Jesus e o seu Reino, com suas mediações históricas limitadas e imperfeitas. Ignorar isso é não levar em conta o mistério da encarnação, questão central para a fé cristã.