As aparições de Maria constituem uma das muitas formas possíveis de manifestações místicas extraordinárias. Chamam-se “místicas”, pois referem-se ao Sagrado (que no cristianismo é nomeado como o Deus Trindade); consideram-se “extraordinárias” porque não acontecem no cotidiano da existência e nem em todas as pessoas. Dentre estas manifestações extraordinárias, citam-se: locuções interiores e exteriores, visões, sonhos de revelação, pré-monições, intuição, sensações de odores e toques e tantas outras possíveis formas de comunicação divina. Algumas pessoas as recebem somente em um momento especial da vida, como parte de seu processo de conversão e crescimento na fé. Em outras, são intermitentes ou constantes, mas acompanhadas da obrigação de manter segredo.
As aparições marianas seriam momentos especiais, na qual a Mãe de Jesus, glorificada na comunhão dos Santos, se mostra a um ou mais videntes e comunica-lhes algo da parte de Deus, em vista da caminhada espiritual da humanidade. Em uma aparição há ao menos um vidente que experimenta sensorialmente que Mãe de Jesus se manifestou a ele(a), com algo que seu corpo percebe em forma de imagem e palavras. Nem toda visão corresponde a uma Aparição. Pode ser que o(a) vidente se auto-sugestione, que sua mente exteriorize em forma de palavras e imagens algo que ele anseia fortemente, que está velado no seu inconsciente pessoal e/ou no imaginário coletivo. Neste caso, trata-se de uma experiência meramente subjetiva, pois a linguagem não expressa a presença de um Outro, vindo em forma de consolo e apelo, mas é uma produção mental do próprio vidente.
A teologia espiritual, baseada no testemunho de muitos santos e místicos, afirma que as manifestações divinas extraordinárias – nas quais se incluem as aparições marianas – são possíveis, mas não necessárias. No caminho da intimidade com Deus, imprescindíveis são a fé, a esperança e a caridade. Todas as outras manifestações são bem-vindas, enquanto direcionadas para o fim principal: seguir Jesus e ampliar seu reino neste mundo, em vista do “novo céu e nova terra”. São Paulo já estabeleceu este critério decisivo, no cântico de 1Cor 13: receber revelações de Deus (profecia), falar com grande eloquência, realizar milagres e feitos extraordinários.... tudo isso é secundário, em vista do amor solidário, que brota da adesão a Jesus (fé) e espera a manifestação plena da sua glória (1 Cor 13,13).
Qualquer fenômeno aparicionista tem simultaneamente várias dimensões. Vejamos algumas.
- Dimensão espiritual. Um ou mais videntes fazem uma experiência religiosa intensa, que eles sustentam ser uma comunicação de Jesus ou de Maria. Esta experiência transforma a vida deles e tende a se difundir, pois os videntes convocam outras pessoas a acolher e praticar a mensagem que afirmam ter recebido da esfera divina. Os movimentos aparicionistas nascem e se desenvolvem dentro de uma corrente de espiritualidade, ou seja, de uma maneira específica de viver e compreender a fé em Jesus. Então, para entender as aparições do ponto de vista teológica, recorremos à teologia fundamental (conceito de revelação), à teologia da Graça (autocomunicação de Deus e a resposta humana) e à teologia espiritual.
- Dimensão eclesial. Os videntes e seu grupo assumem determinada religiosidade católica, que herdaram de sua família e de sua cultura. No entanto, a vidência pode ser também uma experiência original, que não tem antecedentes na vivência eclesial dos videntes. Em segundo lugar, o movimento aparicionista recebe apoio de pessoas e grupos que sintonizam com determinada visão sobre a vida cristã e a Igreja. Estes se apropriam da mensagem dos videntes, na medida em que se identificam com ela. Filtram o conteúdo das palavras dos videntes, de acordo com sua percepção. Além disso, para serem reconhecidos pela Igreja, os videntes aceitam passar pelo processo de investigação e discernimento, sob a coordenação do bispo diocesano e, posteriormente, da Sagrada Congregação da Doutrina da Fé. Assim, embora partam de vivências individuais, as aparições são um fenômeno eclesial, em vários momentos: gênese, constituição, divulgação, discernimento, aprovação e apropriação. Para compreender as aparições do ponto de vista eclesial, recorre-se às ciências da religião, à eclesiologia e aos critérios teológicos-pastorais estabelecidos pela autoridade da Igreja.
- Dimensão psicossomática. Porque somente algumas pessoas veem e ouvem os apelos de Maria de forma sensorial? O que existe na estrutura mental dos videntes, que possibilita captar de uma forma original uma possível comunicação divina? Para responder esta pergunta, a teologia recorre às ciências que estudam os estágios de consciência alterada, os fenômenos da sensitividade e a paranormalidade. Tal estudo não tem a pretensão de esgotar a explicação do fenômeno místico com conceitos da razão humana, retirando assim o valor da intervenção divina. Ao contrário, pretende mostrar como Deus se manifesta, em sua imensa gratuidade, potencializando e transformando o que ele já colocou em suas criaturas.
- Dimensão cultural, social e simbólica. Cada homem ou mulher vive em determinado tempo e espaço. Interage com a sua cultura, recebe condicionamentos de seu contexto e atua sobre ele. Isso também acontece com os movimentos aparicionistas. Cabe à teologia, com humildade e coragem, apontar os condicionamentos culturais que influenciam os videntes e as suas palavras. Dsses elementos culturais não determinam as mensagens atribuídas a Maria. Mas, em distintos graus, as condicionam, no duplo sentido de “oferecer condições” e “limitar”. Talvez seja a dimensão que ofereça mais resistência para ser compreendida. Um percentual significativo de católicos que aceitam as aparições como uma comunicação real de Deus ou de Maria, julgam que os videntes são meros repetidores da mensagem divina, que desce à Terra em forma 100% pura, sem qualquer participação humana. Por isso, estas mensagens teriam um grau de certeza maior que a Bíblia (!), e seria superior à reflexão dos teólogos, o senso comum dos fiéis, ou até as orientações dos bispos, do Concílio Vaticano II e do Papa. A teologia, servindo-se dos estudos das ciências da religião e de outros saberes, tem o dever de apontar os condicionamentos humanos que interferem nas mensagens dos videntes, para favorecer o discernimento à luz da fé, alertar para os enganos e possíveis desvios e estimular uma vivência religiosa equilibrada e lúcida.
Uma leitura panorâmica da História da Espiritualidade cristã leva-nos a compreender que a vidência e outros fenômenos místicos extraordinários estiveram presentes em distinta intensidade, no correr dos dois milênios de cristianismo. Eles fazem parte da Tradição viva da Igreja. De outro lado, a história é sábia ao mostrar que a vidência não é imprescindível, nem para a santidade nem para a evangelização. Embora se encontrem volumosos livros listando prováveis aparições de Maria desde o início da Igreja, é indiscutível que – com algumas exceções, como Guadalupe – o fenômeno só ganha importância para a evangelização nos séculos 19 e 20.
Para compreender as aparições, é necessário recorrer a várias chaves de leitura, convergindo sempre para a pergunta: como esta experiência mística extraordinária pode a ajudar a caminhada da fé dos cristãos católicos, de forma lúcida e equilibrada.
Para saber mais, veja: Afonso Murad. Visões e Aparições. Deus continua falando? Vozes.
Um comentário:
Irmão Afonso Murad, tenho usado muito seu livro Maria, toda de Deus e tão humana para dar uma introdução a Mariologia às nossas Irmãs do Seminário (noviças), além de consultar seu blog e ter comprado livros a partir da bibliografia indicada. Gostaria de saber se é possível ter uma lista das aparições reconhecidas oficialmente pela Igreja. Isso ajudaria me ajudaria a ilustrar este tema. Obrigada. Irmã Carolina Mureb, FC
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